Seguindo a proposta de comentar assuntos que vocês me trazem, o assunto dessa semana me chegou por email, e a fonte é anônima e assim prefere permanecer, mas a história é real, está num blog que, por se tratar de um blog pessoal e não de uma campanha antigay, eu preferi não linkar, mas se você quiser eu posso compartilhar os links via email.
“Esse post não é sobre você. Não é sobre como foi tudo fácil quando você se descobriu gay e foi alegre e saltitante compartilhar as boas novas com sua família. Que vibrou e aplaudiu a ideia de ter um filho gay dentro de casa. Também não é como foi bacana a festa de arromba que seus amigos deram quando você contou pra eles....O mundo que eu vivo tem uma ideia um tanto mais escura sobre coisas coloridas demais.”
Por que é desse mundo e suas ideias escuras que eu vou falar hoje. Da relação, ou falta dela, de uma mãe e sua filha lésbica.
“A Giovanna voltou da Austrália.
Foi no final de semana enquanto eu estava na Argentina.
Foi direto para a casa do meu cunhado e lá está.
O meu grande problema com essa menina é que ela é lésbica.
Esse é o inferno que eu venho vivendo desde o ano passado.
É uma mistura de ódio,nojo e decepção.
Eu tenho muito nojo sim.
Sou preconceituosa e daí.”
Aí você lê só essa parte e tem vontade de odiar a mãe, não entende como é possível que alguém escreva que é preconceituosa e não tem problema nenhum com isso. Ou como ela se refere a filha como “essa menina”, num nível de distanciamento sentimental que você não consegue conceber. Mas vamos ler mais um pedaço e talvez descobrir alguns outros detalhes...
“Eu não consigo mais amar.
Eu tenho dentro de mim um punhal me acertando o estômago toda vez que eu lembro da emoção que eu senti quando o médico disse que era uma menina.
Eu pedi para Deus me mandar essa menina.
Eu quis ser a melhor amiga dela,a mãe mais presente.
E ela é isso,a minha maior decepção.”
Nesse ponto do texto essa mãe, se não tem a minha solidariedade, tem a minha compreensão. Esse é um momento do luto. O luto pelo bebê imaginário, por aquela menininha que ela ia encher de flores e laços e que ia dividir com ela o universo feminino. Morre a filha que ela imaginou casar, com flores, festas e vestidos brancos, com quem ela passaria noites conspirando. Por que esta filha que está aí vive num universo que ela nem consegue dimensionar. Todas as mães vivem isso em algum momento, a não ser que tenham filhos modelos que sigam todo o roteiro que os pais prepararam...e terminem infelizes dependentes sem autonomia.
A morte do filho idealizado acontece com mães que tem filhos deficientes ou prematuros, que não tem a aparência rosada e fofinha que ela sonhou por nove meses. Acontece quando o filho adolescente se torna transgressor e agressivo na ânsia de se auto afirmar. Com a filha que engravida adolescente do badboy da escola. E acontece sim, quando se descobre que o filho ou filha é homossexual. É parte da vida e do crescimento. Mas desse luto é preciso que emerja o filho real. Aquele que está ali na frente dela e precisa de amor.
Infelizmente nem sempre isso acontece. Não aconteceu para essa mãe e essa menina. Quinze dias depois ela escreve, falando sobre o marido:
“Ele tentou,pela décima vez,trazer a filha dele pra casa.
Ela simplesmente disse que está muito feliz na casa do tio e que não está nem um pouco preocupada conosco.
Foi assim mesmo,desse jeito.
Ele voltou triste, sentido com o que ouviu.”
Eu me pergunto sobre que bases ou condições essa menina foi “convidada” a voltar para casa. Seria para ser acolhida? Ou com milhões de normas a serem seguidas para que não permanecesse lésbica? E a resposta não demora a chegar...
“E decidimos juntos desmanchar o quarto dela,tirar tudo que ainda tem lá dentro e reformar nosso apartamento.
Decidimos pensar em nós, nos meninos e deixar que a vida se encarregue de ensinar essa pessoa a ser "gente".
Lamentável demais,mas eu sei que nós não somos os primeiros pais a passar por isso e,infelizmente,não seremos os últimos também.
A vida segue,nós ainda somos uma família,agora uma família de quatro pessoas,mas ainda assim uma família.”
O “desmanchar o quarto” é tão simbólico. Não se trata de um ato mecânico, mas de uma expressão física de um sentimento que já foi definido. Lembram do luto? Pois é....O quarto desmanchado é a morte simbólica dessa menina. É a exclusão espacial de alguém que já não ocupa mais o espaço emocional naquela casa. A filha já é somente “filha dele”, não mais a menina que ela pediu a Deus. Essa mãe não pode suportar o confronto com a filha real e prefere matar a filha ideal, aquela que ela sonhou, por que é mais fácil lidar com o luto do que com a realidade. A morte aqui é simbólica, mas para centenas, talvez milhares de adolescentes gays e lésbicas no mundo todo, a morte real pode vir nas mãos da própria família. Meninos e meninas expulsos de casa, vítimas de abuso, de violência doméstica, na “melhor” das hipóteses, apenas tolerados, mas vítimas de abandono afetivo.
A perda da base afetiva daqueles que deviam, em tese, representar o amor incondicional deixa marcas. Molda muitas vezes a forma como esses meninos e meninas vão encarar seus relacionamentos futuros. Ensina que amor pode vir com etiqueta de preço: amo você se e quando você se encaixa na forma que eu criei para você.
Sim, eu vivi o luto. O luto do filho que ia casar e me dar netos, que traria uma menina para casa como namorada. Aquele menino que eu idealizei, como toda mãe. Eu chorei por não entender o que tinha “dado errado” nos meus planos, onde eu tinha falhado. Eu tive medo de não entender esse filho novo. Eu quis meu mundo arrumadinho, onde eu não teria que explicar todo dia que não, aquele não é o amigo do Lucas é o namorado dele. Eu não quis me preocupar se a família ia ou não entendê-lo. Eu quis forçá-lo de volta naquela forma que me parecia tão melhor e mais adequada. Mas na minha frente existe um menino real. Não os meus sonhos projetados e amorfos. E desse luto saímos, eu e ele, mais fortes e mais unidos.
Para cada mãe que diz que seu filho ou filha homossexual o decepcionou ou envergonhou existe um filho que foi traído no que ele tem de mais importante: a certeza do amor incondicional.
A menina dessa história tem 15 anos